Sou cristão, vinculado à Igreja católica. E estou chocado com o silêncio da CNBB diante do segundo turno. Várias Igrejas evangélicas declararam seu apoio a Bolsonaro e várias outras declararam publicamente sua rejeição a este candidato. Mas a CNBB continua em silêncio…
Pergunto-me por que. Será que consideram que os dois candidatos são tão ruins um como o outro? Seus projetos de sociedade são igualmente nefastos?
Um candidato defende abertamente a ditadura civil-militar que suspendeu a liberdade no Brasil por vinte e um anos, defende a tortura, homenageia um torturador publicamente conhecido, diz que a ditadura matou pouco, faz afirmações discriminatórias contra negros, mulheres, pessoas LGBTI, fala em acabar com adversários e transmite mensagens onde o ódio e a intolerância estão presentes.
Durante a campanha eleitoral do primeiro turno, houve várias agressões por parte de eleitores de Bolsonaro contra pessoas que tinham opinião diferente. Agora, em apenas três dias, foram relatados um assassinato e dezenas de agressões. Em outras palavras, os eleitores de Bolsonaro estão entendendo a mensagem do seu líder como sendo a liberação da violência contra os diferentes: os que pensam diferente, os que têm outro candidato, homossexuais, negros, mulheres feministas.
Frente a estes lamentáveis incidentes, o capitão diz nada poder fazer, por não poder controlar todos os seus eleitores. No entanto, a omissão em oferecer uma palavra pública condenando tais atos e desestimulando a violência só faz aumentar a disposição para novos atos semelhantes. Há poucos dias, dois candidatos do seu partido quebraram uma placa em homenagem a Marielle Franco, a vereadora assassinada junto com seu motorista, e divulgaram a foto como se fosse um troféu. O que se quis dizer com este ato foi ou a aprovação ou a indiferença frente ao assassinato da vereadora, mulher, negra, defensora dos direitos humanos. Seu líder não se pronunciou.
O outro candidato à presidência, Fernando Haddad, faz parte de um partido, o PT, que esteve 13 anos à frente do governo federal. Antes de ser eleito presidente, Lula havia participado de três outras eleições: sempre respeitou o resultado eleitoral. Neste período, os governos do PT se pautaram pelas regras democráticas. Não fizeram só coisas certas, cometeram erros também e sofreram as consequências de seus atos. Foi durante estes anos que houve dois grandes processos por corrupção atingindo políticos deste partido: o PT não interferiu nos processos judiciais. Como resultado de um destes processos, seu líder e ex-presidente foi condenado e foi preso, como está até hoje. Os juízes nomeados pelos governos do PT tiveram papel ativo nestes processos e puderam agir com total liberdade. O Ministério Público também: segundo procuradores da Operação Lava Jato, eles não sofreram interferência do governo. Não se tem notícia de que, em governos anteriores, mesmo quando houve denúncias de corrupção, elas tenham chegado a membros de partidos que estavam no poder.
Além disso, Haddad foi prefeito da cidade de São Paulo e também governou segundo as regras democráticas. Sobre ele, não se tem notícia de corrupção.
Em outras palavras, a candidatura de Fernando Haddad não coloca em risco a democracia, ao contrário, oferece provas de que é comprometido com a democracia.
O que falta à CNBB para se posicionar? Bem entendido, não cabe à Igreja tomar posição a favor de tal ou qual candidato: cabe à Igreja se posicionar sobre o regime democrático, no caso em que ele está em risco. É verdade que alguns bispos têm, corajosamente, feito declarações contundentes sobre o rechaço a qualquer tipo de autoritarismo. Mas são posições individuais, até agora.
Quando estávamos – um grupo de frades dominicanos – presos durante a ditadura (1969-1973), chegou-nos às mãos um livro impressionante, “A Igreja católica e a Alemanha nazista”, de Guenter Lewy. Este livro nos marcou profundamente, porque mostrava o quão omissa havia sido a Igreja católica alemã frente ao nazismo, especialmente sua hierarquia: apenas três bispos haviam tomado posição crítica a Hitler. Nossa preocupação era que a Igreja no Brasil fizesse a mesma coisa. Felizmente, este risco não ocorreu: especialmente a partir de 1970, os posicionamentos críticos às torturas e em defesa dos direitos humanos foram crescendo e se tornando cada vez mais fortes.
Em 1972, o episcopado paulista lança um documento forte, “Testemunho de Paz”; em 1973, por ocasião dos 25 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, saem três documentos de grupos de bispos, do Nordeste, do Centro-Oeste e de Bispos e Missionários junto aos povos indígenas; em 1976, a Comissão Episcopal de Pastoral lança a “Comunicação Pastoral ao Povo de Deus”; em 1977, a CNBB, em sua Assembleia Anual, publica o documento “Exigências Cristãs de uma Ordem Política”.
Podemos dizer que a Igreja católica no Brasil se tornou uma barreira contra a opressão, as prisões e torturas de opositores políticos e em defesa dos direitos dos trabalhadores, dos camponeses e dos povos indígenas.
O que aconteceu na ditadura? Nos últimos meses do governo João Goulart (1961-1964), parte da Igreja se deixou influenciar pelo clima de medo ao comunismo e contribuiu para legitimar o golpe militar. Quando este ocorreu, achou que a democracia ia ser restabelecida em pouco tempo. Vieram porém as prisões, a repressão sobre as manifestações estudantis, os assassinatos de líderes do campo. E depois vieram as prisões de padres, a perseguição a bispos, o assassinato do Padre Henrique e, em pouco tempo, o humor da Igreja em relação ao regime foi mudando.
O AI-5 (Ato Institucional n. 5, de 13/12/1968) foi a gota d’água, pois suspendeu as liberdades individuais e acabou com o habeas corpus. Daí para a frente, a tortura se tornou o método sistemático de interrogatório dos presos. As prisões ficaram abarrotadas de opositores, assassinatos e desaparecimentos se multiplicaram, bispos foram sequestrados ou eram alvos de ataques freqüentes na mídia.
Durante 29 anos, a população deixou de eleger diretamente o presidente da república, durante 14 anos apenas dois partidos foram permitidos e, a cada eleição, um pacote definia as novas regras eleitorais – para garantir que os candidatos dos militares fossem maioria. Se o Congresso estava atrapalhando, o regime cassava os parlamentares mais atuantes, não os corruptos. E, para garantir o apoio da mídia, instituíram a censura: os jornais só podiam divulgar o que o regime permitia, não havia liberdade de imprensa. Músicas e filmes foram censurados, peças de teatro – consideradas ofensivas à moral e aos bons costumes – foram atacadas por grupos violentos.
Em suma, foram vinte e um anos de submissão do povo à vontade dos militares no poder. Os salários dos trabalhadores foram controlados (“arrocho salarial”), as greves foram proibidas, o ativismo foi reprimido. E não houve nenhuma investigação por corrupção. Era absolutamente proibido colocar em questão aqueles que estavam no poder – sob pena de prisão, tortura e risco de vida.
Não se pode dizer que não estamos avisados: nós tivemos uma ditadura recente, nós sabemos o que significa. Há marcas deste período na nossa sociedade que ainda não se apagaram. O candidato que defende a ditadura foi bem explícito sobre o que pensa deste período, da tortura, da repressão, do tratamento a ser reservado aos adversários. Ele não fez nenhuma autocrítica dos governos militares.
A Igreja não poderá dizer, depois, que não sabia.
Ivo Lesbaupin é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Doutor em Sociologia pela Université de Toulouse-Le-Mirail, França. Coordenador da ONG Iser Assessoria (Rio de Janeiro). Autor e organizador de diversos livros, entre os quais: Para evitar o desastre – como construir a sociedade do bem viver (2017); Democracia, Igreja e cidadania: desafios atuais (organizador com Ernanne Pinheiro, 2010); Uma análise do Governo Lula (2003-2010): de como servir aos ricos sem deixar de atender aos pobres (2010); O Desmonte da nação em dados (com Adhemar Mineiro, 2002); O Desmonte da nação: balanço do governo FHC (organizador – 1999).
Fotos: Site Câmara dos Deputados